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sábado, 12 de setembro de 2015

Sobre a Solidão




por Arthur Schopenhauer

Bastar-se a si próprio, ser um todo em tudo por si mesmo e poder dizer omnia mecum porto mea [levo comigo tudo que tenho] é, seguramente, a qualificação mais favorável à nossa felicidade. Daí a máxima de Aristóteles: felicitas sibi sufficientium est [a felicidade é dos que bastam a si mesmos (Ética a Eudemo, 7, 2)], que nunca devemos nos cansar de repetir. (No fundo, é a mesma idéia presente na sentença muito bem torneada de Chamfort, posta como epígrafe neste livro*.) Pois não se pode contar com certeza mais que consigo mesmo; ademais, as dificuldades e as desvantagens, os perigos e os inconvenientes que a sociedade traz consigo são inumeráveis e inevitáveis.

Não há caminho que nos distancie mais da felicidade que a grande vida, a vida de festas e banquetes, a high life; porque seu objetivo é transformar nossa miserável existência em uma sucessão de alegrias, de delícias e de prazeres, um processo que inevitavelmente culmina na decepção e na desilusão; assim como seu acompanhamento obrigatório, o hábito das pessoas de mentir umas para as outras. [1]

Toda sociedade envolve necessariamente, como condição básica de sua existência, a acomodação e a restrição mútuas por parte de seus membros; assim, quanto mais numerosa é, mais insípida se torna. O homem só pode ser si mesmo por completo enquanto estiver sozinho; por conseguinte, quem não ama a solidão, não ama a liberdade; pois o homem só é livre quando está sozinho. A restrição e a ânsia por liberdade são companheiras inseparáveis de toda sociedade; e os sacrifícios que exige serão tanto mais custosos quanto mais acentuada for a própria individualidade do homem. Por conseguinte, cada qual evitará, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor de seu próprio ser. Porque na solidão o mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o espírito elevado toda a magnitude de sua grandeza; em suma, cada qual sente aquilo que é. Ademais, quanto mais elevada for a posição que um homem ocupa na hierarquia da natureza, mais solitário será; isso é essencial e inevitável. Mas será benéfico a esse homem que a solidão física esteja em acordo com sua solidão intelectual, do contrário a frequente relação com seres de natureza distinta exerce sobre ele um efeito inquietante e mesmo prejudicial, visto que roubam-no de si mesmo, e não têm nada para oferecer-lhe em troca. Ademais, enquanto a natureza estabeleceu as maiores diferenças, tanto morais como intelectuais, entre os homens, a sociedade, a despeito disso, os têm como iguais ou, melhor dizendo, substitui essa desigualdade natural com as distinções e os graus artificiais de posição e categoria, que muitas vezes são completamente opostos à hierarquia estabelecida pela natureza. Como resultado, essa disposição eleva aqueles que a natureza colocou muito abaixo e rebaixa os poucos colocados muito acima. Decorre que os últimos, em geral, se retiram da sociedade, onde a vulgaridade prevalece assim que se torna numerosa. O que ofende os espíritos superiores na sociedade é a igualdade de direitos e de aspirações que se derivam dela frente à desigualdade das faculdades e das produções (sociais) dos demais. A chamada boa sociedade admite os méritos de todas as classes, exceto os intelectuais, que são como um contrabando. Impõe o dever de manifestar uma paciência ilimitada para toda tolice, toda loucura, todo absurdo, toda estupidez. Os méritos pessoais, pelo contrário, se vêem forçados a mendigar seu perdão ou a ocultarem-se; pois a superioridade intelectual fere por sua simples existência, sem que nisso haja qualquer intenção. Ademais, essa suposta boa sociedade não só tem o inconveniente de nos pôr em contato com pessoas incapazes de conquistar nosso louvor ou afeição, senão que não nos permite que sejamos nós mesmos segundo nossa natureza. Pelo contrário, nos obriga, em nome da harmonia, a nos apequenarmos e até a nos deformarmos. Conversas e idéias intelectuais só servem à sociedade intelectual; na sociedade vulgar são detestadas por completo, porque para se agradar nessa é imprescindível ser completamente insípido e limitado. Portanto, em tal sociedade, devemos praticar uma severa abnegação, abrindo mão de três quartos de nossa própria personalidade para nos assemelharmos aos demais. É certo que, em troca, temos os demais; porém, quanto mais mérito se tem, mais se verá que aqui o ganho não cobre o prejuízo, e que isso redunda em nosso detrimento. Porque as pessoas são, em regra, falidas; isto é, não têm em seu trato nada que possa indenizar-nos do tédio, das fadigas e dos desgostos proporcionam nem do sacrifício de si mesmo que exigem. Resulta que quase toda a sociedade é composta de tal modo que quem a troca pela solidão sempre faz um bom negócio. Ademais, há o fato de que, para substituir a verdadeira superioridade, i.e. intelectual, que é difícil de se encontrar, mas intolerável quando encontrada, a sociedade adotou por capricho uma falsa superioridade, de natureza convencional. Baseada em princípios arbitrários, é transmitida como uma tradição entre as classes elevadas e, como uma senha, sujeita a alterações. É o que se denomina bon ton, fashionableness [o bom tom, a distinção]. Não obstante, quando entra em conflito com a verdadeira superioridade, a debilidade da primeira não tarda em manifestar-se. Ademais, quand le bon ton arrive, le bon sens se retire [quando o bom tom chega, o bom senso se retira].

Em geral, não se pode estar em uníssono perfeito mais que consigo mesmo, não se pode estar com o amigo, tampouco com a mulher amada. Porque as diferenças da individualidade e do caráter produzem sempre uma dissonância, por menor que seja. Assim, pois, a paz verdadeira e profunda do coração e a perfeita tranquilidade do espírito, esses bens supremos na terra depois da saúde, não se encontram mais que na solidão e, para ser permanente, apenas na reclusão mais profunda. Então, quando se é elevado e rico, se desfruta do estado mais feliz que se pode encontrar neste mundo miserável. Sim, sejamos francos; por mais íntimos que sejam os laços da amizade, do amor e do matrimônio, o homem só preza honestamente pelo seu próprio bem-estar; no máximo, pelo de seu filho. Por conseguinte, quanto menos um homem for levado, devido a condições objetivas ou subjetivas, a entrar em contato com outros, melhor se encontrará. O isolamento e a solidão têm seus males, mas, apesar de não podermos senti-los de uma só vez, ao menos podemos investigá-los. A sociedade, pelo contrário, é insidiosa; oculta males imensos, às vezes irreparáveis, detrás de uma aparência de passatempos, de conversas, de entretenimentos sociais e outras coisas semelhantes. Um estudo importante para a juventude seria aprender a suportar a solidão, visto que é a fonte de felicidade e de paz de espírito. De tudo que acabamos de expor, resulta que aquele que leva a melhor parte é o que só conta consigo mesmo e que pode ser si mesmo no todo. Até Cícero disse: Nemo potest non beatissimus esse qui est totus aptus ex sese, quique in se uno ponit omnia [não se pode senão ser muito feliz quando se é apto por si mesmo e se põe em si todas as coisas. (Paradoxa, II)]. Ademais, quanto mais o homem tem em si, menos podem servir-lhe os demais. Esse sentimento de auto-suficiência é o que impede o homem de valor e mérito intrínsecos de realizar os consideráveis sacrifícios exigidos pela vida em comum, ainda mais de buscá-la à custa de uma evidente abnegação de si mesmo. É o sentimento oposto que torna os homens vulgares tão sociáveis e tão acomodados; visto que é mais fácil suportarem os demais que a si mesmos. Além disso, devemos lembrar que, neste mundo, aquilo que tem valor real não é apreciado e o que se aprecia não tem valor. Encontramos a prova e o resultado disso na vida retirada de qualquer homem de mérito e distinção. Portanto, demonstrará verdadeira sabedoria de vida aquele que, possuindo algum valor em si mesmo, restringe, se for preciso, as suas necessidades a fim de preservar ou ampliar sua liberdade e, assim, guarda-se o máximo possível da intimidade com os demais, visto que o contato com os homens é inevitável.

Por outro lado, o que faz os homens sociáveis é sua incapacidade de suportar a solidão e a sua própria companhia. Seu vazio interior, fadiga e tédio os conduzem a buscar a sociedade e a empreender viagens a países estrangeiros. Seus espíritos carecem da elasticidade necessária para se imprimirem movimento próprio. Tentam melhorar sua situação por meio do vinho e, desse modo, muitos deles acabam se tornando bêbados. Por esse mesmo motivo, necessitam constantemente da excitação exterior e mesmo da mais forte, i.e. produzida por seres de sua espécie, sem a qual seus espíritos cedem sob seu próprio peso e caem em uma dolorosa letargia. [2] Pode-se dizer igualmente que cada qual deles não é mais que uma pequena fração da Idéia da humanidade, necessitando ser complementados com muitos outros para que, de algum modo, surja uma consciência humana inteira. Pelo contrário, aquele que é um homem completo, um homem par excellence, representa uma unidade inteira, não uma fração e, por conseguinte, se basta a si mesmo. Nesse sentido, pode-se comparar a sociedade vulgar a essas orquestras russas compostas exclusivamente de trombetas, nas quais cada instrumento só tem uma nota, e a música é produzida quando todos soam ao mesmo tempo. Pois o temperamento e a mentalidade da maioria dos homens são tão monótonos como essas trombetas de apenas uma nota. Neles parece realmente não haver senão um único pensamento, sem espaço para qualquer outro. Isso explica, por sua vez, não apenas por que são tão entediados, mas também por que são tão sociáveis e preferem andar em bandos: the gregariousness of mankind [a gregariedade humana]. É a monotonia de seu próprio ser o insuportável a cada um deles: omnis stultitia laborat fastidio sui [a estupidez sofre com o cansaço de si mesma (Sêneca, Epistulae, 9.)]. Só juntos e unidos chegam a ser algo; como esses tocadores de trombetas. O homem de inteligência, pelo contrário, é comparável a um virtuoso que executa seu concerto por si só; é como um piano. Assim como esse instrumento é por si só uma pequena orquestra, o homem de inteligência é um pequeno mundo; e aquilo que os demais só conseguem em conjunto, este apresenta na unidade de uma só consciência. Assim como o piano, não é parte da sinfonia, mas voltado ao solo e à solidão. Quando precisa cooperar com os demais, isso não pode ser mais que como voz principal com acompanhamento, também como o piano; ou para dar o tom na música vocal, sempre como o piano. Entretanto, aqueles que gostam da sociedade poderão extrair da analogia anterior a regra de que a falta de qualidade pode, até certo ponto, ser compensada pela quantidade. Um homem de inteligência é companhia suficiente; porém, quando não se encontra mais que homens vulgares, será bom que haja um grande número deles, de modo que algo possa resultar de sua variedade e cooperação – analogamente à já mencionada música de trombetas; e que o céu nos conceda a paciência!

Mas esse vazio interior e essa nulidade das pessoas podem também ser atribuídas ao fato de que, quando alguns homens de ordem superior se agrupam com o intuito de um fim nobre e ideal, o resultado será quase sempre que, das grandes massas humanas – que, como insetos, recobrem todas as coisas e estão sempre dispostas a apoderar-se de tudo indiscriminadamente com o objetivo de aliviar seu tédio ou outros defeitos de sua natureza – sempre haverá alguns que conseguem se infiltrar ou invadir essa sociedade. Em pouco tempo, destruirão a obra por completo, ou a modificarão de tal forma que se torna praticamente o oposto da intenção original.

A gregariedade também pode ser considerada como uma forma de aquecimento mental análogo ao aquecimento corporal produzido quando se aglomeram em dias frios. Porém, aquele que possui muito calor intelectual não necessita de tais aglomerações. No último capítulo do segundo volume desta obra [Parerga e Paralipomena, § 396], o leitor encontrará um conto que ilustra a questão. A consequência de tudo isso é que a sociabilidade de cada qual está em razão inversa de seu valor intelectual; dizer que alguém “é muito insociável” significa mais ou menos “é um homem dotado de elevadas faculdades”.

A solidão confere uma vantagem dupla ao homem de intelecto superior; a primeira de estar consigo mesmo, e a segunda de não estar com os demais. Essa última será altamente valorizada se tivermos em mente quanta restrição, inconveniência e mesmo perigo estão envolvidos em toda sociedade. La Bruyère disse: tout notre mal vient de ne pouvoir être seuls [todo nosso mal vem de não podermos estar sós]. A gregariedade ou sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas, e mesmo fatal, porque nos põe em contato com seres que, em grande maioria, são moralmente maus e intelectualmente limitados ou pervertidos. O homem insociável é aquele que não tem necessidade das pessoas; ter o bastante em si mesmo para que não se precise da sociedade é, portanto, uma grande felicidade. Pois quase todos os nossos males derivam da sociedade, e a paz de espírito que, depois da saúde, constitui o elemento mais essencial de nossa felicidade, é colocada em perigo por ela, de modo que não pode existir sem uma quantidade significativa de solidão. Os filósofos cínicos renunciaram a todas as posses para desfrutar da alegria proporcionada pela paz de espírito; aquele que, com o mesmo fim, renuncia à sociedade, escolhe o caminho mais prudente. Bernardinho de Saint-Pierre disse com beleza e razão: La diète des alimens nous rend la santé du corps, et celle des hommes la tranquillité de l’âme [a dieta dos alimentos nos proporciona a saúde do corpo, e a dos homens, a tranquilidade da alma]. Assim, aquele que cedo desenvolveu amizade ou mesmo afeto pela solidão adquiriu uma mina de ouro; todavia, isso não é possível a todos. Pois, assim como a miséria e a privação são o que primeiro aproxima os homens, também mais tarde, livres da necessidade, são unidos pelo tédio. Sem esses dois motivos, cada qual provavelmente permaneceria sozinho, ainda quando só fosse porque na solidão o ambiente que nos rodeia corresponde ao sentimento de importância exclusiva que cada qual possui aos seus próprios olhos, mas que é reduzido a nada pela corrente tumultuosa do mundo, recebendo a cada passo uma dolorosa démenti [contestação]. Nesse sentido, a solidão é o estado natural de todos os indivíduos, na qual o homem, como um novo Adão, desfruta da felicidade original permitida pela sua natureza.

Mas, naturalmente, Adão não tinha pai nem mãe! Por isso, num sentido diverso, a solidão não é natural ao homem, visto que em sua chegada não se encontra só, mas em meio a pais, irmãos e irmãs, isto é, numa comunidade. Por conseguinte, o amor pela solidão não pode existir como uma inclinação primitiva, mas deve nascer como um resultado da experiência e da reflexão; se produzirá sempre em relação com o desenvolvimento da força intelectual própria e em proporção ao avanço da idade; segue-se que, em geral, o instinto social do homem estará em relação inversa à sua idade. A criança pequena lança gritos de medo e aflição assim que é deixada sozinha por alguns momentos. Para os jovens, estarem sozinhos é uma severa penitência. Os adolescentes se reúnem entre si; unicamente os dotados de uma natureza mais nobre já buscam às vezes a solidão; não obstante, passar o dia inteiro sozinhos ainda lhes é difícil. Por outro lado, para o homem maduro é coisa fácil; pode estar muito tempo sozinho, e tanto mais quanto mais avança na vida. O ancião, único sobrevivente de gerações desaparecidas, morto para os prazeres da vida, encontra na solidão seu verdadeiro elemento. Porém, em cada indivíduo, o aumento na inclinação ao retiro e à solidão sempre ocorrerá na medida de seu valor intelectual. Porque, como temos dito, não é uma inclinação puramente natural, provocada diretamente pela necessidade; é somente o efeito da experiência adquirida e da reflexão a esse respeito, especialmente da compreensão da natureza miserável, tanto moral como intelectual, da grande maioria dos homens. O pior que há nessa condição é que as imperfeições morais e intelectuais do indivíduo conspiram e trabalham em conjunto, produzindo os fenômenos mais repulsivos, que tornam desagradável e mesmo intolerável a convivência com a maioria dos homens. E ainda que haja neste mundo tantas coisas más, a sociedade é a pior delas, de modo que até Voltaire, o francês sociável, chegou a dizer: La terre est couverte de gens qui ne méritent pas qu’on leur parle [a terra está coberta de pessoas que não merecem que se lhes fale]. O terno Petrarca, um espírito tão vivo e constante em seu amor à solidão, dá o mesmo motivo:

Cercato ho sempre solitaria vita 
(Le rive il sanno, e le compagne e i boschi), 
Per fuggir quest’ ingegni sordi e loschi, 
Che la strada del ciel’ hanno smarrita. 

[Sempre busquei uma vida solitária (os ribeiros o sabem e as campinas e os bosques) para escapar desses espíritos disformes e míopes que perderam o caminho do céu. (Soneto 221.)]

No mesmo sentido, amplia a questão em seu belo livro De Vita solitaria, que parece haver servido de modelo a Zimmermann em sua célebre obra intitulada Da Solidão. Com sua maneira sarcástica, Chamfort expressa exatamente essa origem secundária e indireta da insociabilidade: On dit quelquefois d’un homme qui vit seul, il n’aime pas la société. C’est souvent comme si on disait d’un homme qu’il n’aime pas la promenade sous le prétexte qu’il ne se promène pas volontiers le soir dans la forêt de Bondy [Diz-se algumas vezes de um homem que vive só que não gosta da sociedade. É como se se dissesse de um homem que não gosta de passear sob o pretexto de que não se passeia com gosto à noite no bosque de Bondy.]. [3] Santo Silésio, alma doce e cristã, confessa o mesmo sentimento com sua linguagem mítica que lhe é própria:

Herodes ist ein Feind; der Joseph der Verstand, 
Dem machte Gott die Gefahr im Traum (in Geist) bekannt; 
Die Welt ist Bethelem, Aegypten Einsamkeit, 
Fleuch, meine Seele! fleuch, sonst stirbest du vor Leid. 

[Herodes é um inimigo; José é a razão, a quem Deus revela em sono (em espírito) o perigo. O mundo é Belém, o Egito é solidão. Foge, alma minha!, foge ou morrerás de dor.]

Nessa perspectiva, Giordano Bruno expressa a opinião de que tanti uomini che in terra hanno voluto gustare vita celeste, dissero con una voce: “ecce elongavi fugiens et mansi in solitudine” [Todos os homens que na terra quiseram desfrutar a vida celestial, disseram a uma voz: “Eis que fugiria para longe, e pernoitaria no deserto.” (Salmos, 55:7)]. Assim se expressa também, falando de si mesmo, Saadi, o persa, em o Gulistan: Cansado de meus amigos em Damasco, me retirei ao deserto, junto da Jerusalém, para desfrutar da sociedade dos animais. Em suma, a mesma idéia foi expressa por todos aqueles a quem Prometeu deu forma com o melhor barro. Que prazeres esses seres privilegiados podem encontrar na relação com criaturas com as quais não têm nada em comum, senão no que há de mais vil e ignóbil em sua natureza, isto é, naquilo que é lugar-comum, trivial e vulgar? O que podem encontrar naqueles que constituem uma comunidade e que, não podendo elevar-se à altura dos primeiros, não têm outro recurso senão rebaixá-los à sua? No fundo, é um sentimento aristocrático que alimenta a inclinação ao isolamento e à solidão. Todos os desgraçados são sociáveis; que pena. Por outro lado, vemos que um homem é de natureza nobre quando não encontra prazer nos demais; sempre prefere a solidão em vez de companhia. Com o passar dos anos, chega a perceber que, salvo raras exceções, no mundo não há meio termo entre solidão e vulgaridade. Essa verdade, por mais severa que pareça, foi expressa até por Santo Silésio, não obstante sua ternura e caridade cristãs:

Die Einsamkeit ist noth: doch sei nur nicht gemein, 
So kannst du überall in einer Wüste sein. 

[A solidão é penosa; porém, não sejas vulgar, e poderás encontrar em todo lugar um deserto.]

Em relação aos espíritos ilustres, é muito natural que esses verdadeiros educadores do gênero humano sintam tão pouca inclinação a pôr-se em comunicação frequente com os demais, como pode sentir o pedagogo ao participar das brincadeiras ruidosas das crianças que lhe rodeiam. Porque nasceram para guiar a humanidade através do mar de erros até o céu da verdade e conduzi-la do negro abismo de sua grosseria e vulgaridade até a luz da cultura e do refinamento. É verdade que devem viver entre eles, porém sem nunca pertencer-lhes realmente. Desde sua juventude, sentem-se sensivelmente diferentes dos demais, mas apenas lentamente e com o passar do tempo chegam a compreender com nitidez sua posição. Então cuidam para que seu isolamento intelectual também seja reforçado pela distância física, e para que ninguém se aproxime deles, senão aqueles mais ou menos livres da vulgaridade em geral. Resulta disso tudo que o amor à solidão não se apresenta diretamente e na forma de um impulso primitivo, mas se desenvolve indiretamente, em particular nos espíritos distintos, e apenas gradualmente. Esse desenvolvimento não é alcançado sem que dominemos o instinto natural de sociabilidade, por vezes opondo-lhe a sugestão de Mefistófeles:

Hör’ auf mit deinem Gram zu spielen, 
Der, wie ein Geier, dir am Leben frisst: 
Die schelechteste Gesellschaft lässt dich fühlen 
Dass du ein Mensch mit Menschen bist. 

[Cessa de cultivar tua pena que, semelhante a um abutre, te devora a existência; a pior companhia te faz compreender que és um homem entre os demais. (Fausto, Goethe, Parte I., 1281-5.)]

A solidão é o destino de todos os espíritos excepcionais, e isso às vezes lhes entristecerá; porém, sempre a escolherão como o menor dos males. Entretanto, nesse respeito, com o passar dos anos, o sapere aude [atreve-se a saber] torna-se cada vez mais fácil e natural; chegando aos sessenta anos, a inclinação à solidão chega a ser realmente natural, e mesmo instintiva, pois tudo então conspira em seu favor. Os impulsos mais poderosos à socialização, a saber, o amor das mulheres e o impulso sexual, deixam de exercer influência; o desaparecimento do sexo no ancião lança os fundamentos para uma certa autosuficiência que lentamente absorve o instinto social. Mil ilusões e tolices foram superadas; a vida de ação cessou quase por completo. O homem não tem mais expectativas, planos ou intenções. A geração à qual realmente pertence deixou de existir; rodeado de outra que lhe é estranha, já se encontra objetiva e essencialmente sozinho. O passar do tempo se tornou acelerado, e deseja empregá-lo intelectualmente. Porque neste momento, contanto que o cérebro tenha conservado suas forças, a grande quantidade de conhecimento e experiência que adquirimos, a meditação progressivamente aprofundada e a grande habilidade no emprego de nossas forças tornam os estudos de todo tipo mais fáceis e interessantes. Vemos claramente um milhar de coisas que então estavam envoltas numa nuvem de incerteza; alcançamos resultados e sentimos integralmente nossa superioridade. Devido à grande experiência, deixamos de esperar muito dos homens; pois, no todo, não ganhamos em conhecê-los mais de perto. Pelo contrário, sabemos que, salvo algumas raras e felizes exceções, não encontraremos mais que exemplares muito defeituosos da natureza humana, e que mais vale deixá-los em paz. Já não estamos expostos às ilusões comuns da vida, e vemos prontamente o que cada homem vale; raramente sentiremos o desejo de entrar em relação mais íntima. Por fim, o hábito do isolamento e do trato consigo mesmo se arraiga e se torna uma segunda natureza, especialmente se a solidão foi nossa amiga de juventude. Assim, o amor pela solidão, que tivemos de conquistar através da luta com o impulso social, passa a ser natural e simples; na solidão somos como um peixe na água. Por isso, todo homem superior, possuindo uma individualidade distinta das outras e, por conseguinte, ocupando um lugar único, se sentirá oprimido em sua juventude por essa posição completamente isolada, mas aliviado em sua velhice. Sem dúvida, cada qual desfrutará desse verdadeiro privilégio da idade na medida de suas forças intelectuais; e será mais plenamente apreciado pelos espíritos eminentes, apesar de que em menor grau todos os demais o conseguem. Apenas as naturezas extremamente inferiores e vulgares serão na velhice tão sociáveis quanto na juventude. Mas então se tornam um fardo para a sociedade, na qual não se encaixam, e no máximo são tolerados, em vez de ser buscados como antes.

Pode-se também encontrar um aspecto teleológico na relação inversa entre nossa idade e o grau de nossa sociabilidade. Quanto mais jovem é o homem, mais tem que aprender em todos os sentidos. E é durante a juventude que a natureza proporciona um sistema de ensino mútuo, no qual a instrução é transmitida pela simples relação com os seus semelhantes, de modo que podemos considerar a sociedade humana como um grande estabelecimento educacional bell-lancasteriano. Os livros e as escolas são instituições artificiais, pois estão muito distantes do plano da natureza. Desse modo, é muito útil que, em sua juventude, um homem seja um dedicado aluno da instituição de ensino da natureza.

Nihil est ab omni parte beatum [nada é perfeito em todos os sentidos], disse Horácio; e Não há flor sem mácula, diz um provérbio hindu. Assim, também a solidão, com todas as suas vantagens, tem seus ligeiros inconvenientes e incômodos que, não obstante, são mínimos em relação aos da sociedade. De tal forma que um homem que tem valor próprio sempre julgará mais fácil prescindir dos demais que manter relações com eles. Entre os inconvenientes, há um de que não nos damos conta tão facilmente quanto os demais. Assim, como sempre permanecemos fechados em nossas casas, nossos corpos se tornam tão sensíveis às influências externas que a menor brisa resulta efeitos mórbidos. Da mesma forma, devido ao prolongado isolamento e solidão, nosso caráter se torna tão sensível que nos sentimos inquietos, aflitos ou irritados pelos acontecimentos mais insignificantes, por palavras e até por um olhar, enquanto que tais coisas passam despercebidas por aqueles que sempre estão no tumulto da vida.

Quando um homem julga a sociedade desagradável e se sente justificado em fugir para a solidão, comumente mostra-se incapaz de suportar seu vazio, especialmente se é jovem. Aconselho que se habitue a levar à sociedade uma parte de sua solidão, e que aprenda a estar sozinho, até certo ponto, ainda que em companhia. Por conseguinte, que não comunique imediatamente aos demais aquilo que pensa; por outro lado, que não atribua demasiado valor ao que dizem. Pelo contrário, que não espere muito deles, tanto moral como intelectualmente, e que, desse modo, em relação às suas opiniões, exercite aquela indiferença que é o modo mais seguro de sempre praticar uma louvável tolerância. Ainda que esteja entre eles, não estará completamente em sua companhia, conferindo às suas relações um caráter puramente objetivo. Isso o protegerá de contatos demasiado íntimos com a sociedade e, por conseguinte, de todo contágio e, com maior motivo, contra toda agressão. Encontramos uma excelente descrição dramática dessa sociabilidade restrita ou entrincheirada na comédia El Café o sea la comedia nueva, de Moratin, em especial no personagem Don Pedro nas cenas segunda e terceira do primeiro ato. Nesse sentido, a sociedade também pode ser comparada a uma fogueira na qual o homem prudente se aquece de uma distância segura, enquanto o tolo, chegando perto demais, queima-se e foge à gélida solidão, lamentando que o fogo queime.

[1] Assim como nosso corpo está envolto em roupas, nosso espírito está revestido de mentiras. Nossas palavras, nossas ações, toda a nossa natureza é enganosa; e apenas através desse envoltório podemos às vezes adivinhar o que alguém realmente pensa, assim como podemos adivinhar a forma do corpo a partir das roupas.

[2] Todos sabem que os males são aliviados quando os sofremos em comum. Os homens parecem considerar o tédio como um desses males e, por isso, se reúnem para se entediarem em conjunto. Assim como o amor à vida não é no fundo mais que o medo da morte, assim também o instinto social dos homens não é um sentimento direto. Logo, não se baseia no amor à sociedade, senão no medo da
solidão, porque não é exatamente a agradável companhia dos demais aquilo que se busca, mas a fuga da aridez e desolação da solidão, assim como da monotonia das suas próprias consciências, que são desocupadas. Para escapar da solidão, suportamos até má companhia e toleramos o fardo e o sentimento de restrição que toda sociedade necessariamente implica. Se, por outro lado, surge um desgosto disso tudo e, como consequência, surge o hábito da solidão e uma preparação contra a primeira impressão que produz, de modo que não produz os efeitos que descrevemos acima, então se pode tranquilamente estar sempre só e sem suspirar pela sociedade. Isso precisamente porque não é uma necessidade direta e porque, por outro lado, já estaremos acostumados às benéficas virtudes da solidão.

[3] No mesmo sentido, disse Saadi em o Gulistan: Desde então, abandonamos a sociedade e trilhamos o caminho do isolamento. Porque a segurança está na solidão.


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SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a Sabedoria de Vida (Ensaio dos Parerga e Paralipomena - (b) sobre a nossa conduta para conosco; pp. 57-64). Tradução: André Díspore Cancian. 

Nota:
* Le bonheur n’est pas chose aisée: il est très difficile de le trouver en nous, et impossible de le trouver ailleurs.
[a felicidade não é uma questão fácil; é muito difícil encontrá-la em nós mesmos, e impossível encontrá-la alhures. (Chamfort)]