Por Vivaldo Coaracy
Escutem uma história que me contaram há muitos, muitos anos. Era uma vez um menino abandonado. Havia muitos outros, é certo, como sempre os há nas grandes cidades, em todas as terras. Mas esta é a história só de um deles.
Era um menino magrinho, miúdo e fraco, vestido de mulambos que ninguém sabe onde ele arranjava. Não tinha onde morar. Passava as noites encolhido num vão de porta, um canto escuro. Era tão pequeno que parecia uma trouxa deixada ali para o lixeiro e a ronda, quando passava por aquele lugar deserto, nem o via. E assim dormia. Às vezes um cachorro vadio vinha farejá-lo e enroscava-se junto dele para repartirem mutuamente o calor dos corpos miseráveis.
De dia, o menino andava pelas ruas. Pechinchava aqui a moeda para comprar um pão, ali, à porta dum frege uns restos de comida. Sempre havia gente que dava. Quando não davam e a fome apertava, furtava. Na balbúrdia do Mercado, era sempre fácil furtar uma fruta, uma bolacha ou um pedaço de linguiça. Ia vivendo.
Nem sempre fora assim. Lembrava-se vagamente de que, num tempo em que lhe parecia muito longe, tinha tido pai e mãe, como os outros, e morava numa casa. O pai saía cedo para trabalhar e voltava tarde. A mãe cozinhava nuns fogareiros, fazendo em latas a comida para eles, lavava, ia buscar água na bica, arrumava a casa. E ele brincava no terreno baldio em volta do barraco. Às vezes vinha gente, mas ele não se lembrava bem do que diziam ou queriam. O pai trazia vidros de remédios que andava sempre a tomar. A mãe também tomava os mesmos remédios.
Lembrava-se de que certa vez ela dera uma sova porque ele, sem querer, quebrara um daqueles vidros.
Um dia vieram uns homens em automóvel e levaram o pai e a mãe. Uma vizinha recolheu-o e explicou que os pais tinham sido levados para o hospital que ficava longe, muito longe porque eram doentes. Um dia talvez voltassem; ela não sabia. A vizinha cuidou dele alguns dias; mas o marido dela zangou-se, mandou-o embora e proibiu que tornasse a aparecer. Ninguém o queria. E desde então passou a viver assim, abandonado, ao Deus dará. Dalgum jeito, Deus dava.
Às vezes procurava juntar-se a outros garotos, maltrapilhos como ele, que também corriam pelas ruas, para partilhar de suas folias e travessuras. Mas sempre ao fim de pouco tempo, no segundo ou terceiro dia, era enxotado. Surgiam cochichos entre os companheiros; olhavam para ele com desconfiança; apontavam-no a dedo, e por fim escorraçavam-no:
─ Vai embora! Saia daqui! Não queremos você conosco! Você é doente.
Doente! Era a palavra que lhe atiravam como um insulto. Era a maldição que o excluía do convívio dos outros. E para afastá-lo mais depressa, davam-lhe safanões ou jogavam-lhe pedras, humilhavam-no com vaias. E ele foi ficando cada vez mais só.
Uma velha caolha e suja, que sentada nos degraus da Matriz pedia esmolas, era a única pessoa que não o repelia. Conversava com ele quando não havia gente entrando ou saindo da igreja, contava-lhe histórias, falava-lhe de Nossa Senhora. Foi a velha que lhe disse que não fizesse caso da maldade dos garotos.
Ele não era doente, só os pais dele é que eram. E por isso tinham sido levados para o leprosário. Se ele sofresse da mesma a moléstia, também o teriam levado.
E não havia cura para os pais? ─ Talvez houvesse. Ele que fosse bom e rezasse muito, porque Nosso Senhor, quando andou pelo mundo, curava os lázaros. Mas talvez Deus já os tivesse para si. Quem poderia lá saber o que era melhor? E a velha sacudia a cabeça.
E assim o pequeno foi vivendo cada vez mais magrinho e fraco, cada vez mais só.
Ora, certo dia ele viu a igreja toda iluminada. Havia música lá dentro e muita gente entrava alegre, rindo e se cumprimentando. A mandinga lhe explicou que era dia de Natal; mas mandou-o logo que se fosse embora; estava atrapalhando. A velha estava muito atarefada a recolher esmolas que nesse dia eram mais fartas e freqüentes.
Dia de Natal! Fora a mesma velha quem lhe contara uma vez que, nesse dia, o Menino Jesus vinha ao mundo para distribuir brinquedos e presentes às crianças que tinham sido boas.
Seria verdade? E se o menino Jesus viesse, traria um presente para ele? Um brinquedo? ─Ele nunca havia tido um brinquedo na vida. Lembrava-se que tinha visto nas vitrines das lojas ou nas mãos de outros meninos. Queria tanto ter um! Qual? Se pudesse escolher, qual seria o que escolheria? ─ Mais do que um brinquedo, talvez quisesse ter um cachorro. Um brinquedo é de pau ou de ferro; quebra-se, gasta-se. Um cachorro vive, mexe-se sozinho, acompanha a gente. Será que o Menino Jesus também dá cachorros?
A velha dissera que o Menino Jesus só dava presentes às crianças boas. Ele era um menino bom? ─ Não; não era. Toda a gente o enxotava, toda a gente corria com ele. E fazia coisas que não devia fazer. Na véspera ainda tinha furtado uma pera no mercado. Verdade que a pêra estava meio podre. Mas o dono das frutas tinha-o visto e correra atrás dele, xingando de nomes feios. Até o chamara de filho do diabo! Se pensavam que ele era filho do diabo, não podia ser bom. Jesus não se lembraria dele.
Já sabia que não ia ganhar nada. Mas se ao menos pudesse ver o Menino Jesus! Mesmo que fosse de longe...
Durante todo o dia andaram estas idéias fervilhando na cabeça do garoto. À tarde o vento enfarruscou-se e começou a chover. Veio a noite, fria e escura, com a chuva caindo sem parar. O pequeno tiritava sob os trapos encharcados. Sentia uma dor nos ossos. Doíam-lhe as pernas; doía-lhe a cabeça. Tinha um ardor nos olhos. Mas continuava a caminhar pelas ruas. Podia recolher ao seu vão de porta, onde costumava dormir. Lá estaria meio abrigado da chuva, meio protegido do vento. Mas entrara-lhe na cabeça aquela vontade de ver o Menino Jesus. Nem que fosse de longe, por um instante só, ao atravessar de uma esquina. E sabia que era de noite que o Menino Jesus andava distribuindo presentes pelas casas das crianças que tinham sido boas.
A velha caolha contava assim.
E continuava a andar. Ia pelas ruas de um bairro de moradias. Era com certeza por lá que o Menino Jesus devia passar.
Em todas as casas havia luzes, música, risos, festa. De vez em quando, as vidraças deixavam ver o que se passava lá dentro. E o pequeno parava a olhar com grandes olhos que a febre queimava. Aqui, bandos de crianças correndo em volta da sala, rindo, brincando, em explosões de alegria: ali, uma árvore grande no meio da casa, cheia de luzes, com bolas e estrelas brilhantes penduradas nos ramos verdes; mais adiante, uma grande mesa posta, com toalha muito branca, castiçais com velas de cores, pratos e pratos com pilhas de gulodice e gente em volta, falando, rindo, folgando; noutras casas, pares de moços e moças giravam, dançando ao som da musica que chegava até à rua, enquanto crianças, em algazarra, corriam e se metiam pelo meio dos pares, atrapalhando; mas ninguém ralhava, todos riam. E o garoto triste parava um pouco, a olhar, a olhar, e depois continuava a caminhar para ir parar mais adiante, a olhar outro quadro. Natal.
Mas a noite foi avançando. Aos poucos as luzes foram se apagando; a música, os risos, os gritos de alegria foram cessando; as ruas desertas envolveram-se na escuridão e no silêncio. E o menino Jesus? ─ Será que já teria passado sem ele ver? ─ O pequeno não podia caminhar mais. Estava cansado. Lembrou-se de que não havia comido nada durante o dia; mas não sentia fome. Só cansaço. Não podia mais caminhar. Sentou-se na soleira do portão do jardim de uma casa grande onde já fizera o silêncio e as luzes se tinham apagado. Ficaria um pouco ali. Até passar o cansaço. O pior era aquela dor fina que lhe tomava o corpo todo que subia das pernas e lhe apertava o peito. E o frio que sentia lhe fazia tremer as carnes e bater os dentes, ao mesmo tempo em que por dentro da cabeça sentia um calor que doía.
Que coisa esquisita! E o ardor nos olhos. Os olhos queimavam como se fossem duas brasas. Nunca tinha sentido aquilo. Já nem podia enxergar direito a rua. Havia de ser por causa da chuva e da escuridão. Ia fechar os olhos e encostar a cabeça um pouco no portão de ferro. Talvez passasse.
Foi então que viu ao longe, no começo da rua, uma luz que vinha caminhando. Era uma luz como nunca vira; parecia a chama de uma das velas da igreja, mas muito grande, muito clara, muito brilhante. E vinha se aproximando devagar, no meio da noite e da chuva. E quando a luz chegou perto dele, o pequeno viu que ela irradiava de um menino que lhe caminhava no centro. Era um menino lindo, com os cabelos louros caindo sobre os ombros, vestido numa túnica branca, com um cesto pendurado no braço. Ali estava o Menino Jesus! E de perto, parado diante dele, como nunca podia ter pensado! O pequeno estendeu-lhe os braços:
─ Jesus! Você trouxe um brinquedo para mim?
Mas o Menino mostrou-lhe o cesto vazio:
─ Não tenho mais nada. Dei tudo o que trazia.
O pequeno abaixou a cabeça:
─ Eu sabia que para mim não havia de sobrar nada. Paciência!
O Menino Jesus estendeu-lhe a mão:
─ Vem comigo!
De mãos dadas, lado a lado, como irmãos, no centro da mesma luz, os dois desapareceram pela noite a dentro.
Na manhã seguinte houve um reboliço no palacete, quando os criados, ao abrir o portão, descobriram na soleira, como uma trouxa de mulambos sujos, um pequeno cadáver.
A polícia acudiu logo e o “rabecão” transportou para o necrotério o corpinho do garoto anônimo.
Preferi transcrever esse conto, por achar pertinente, e chamar a atenção das pessoas para o fato da indiferença e o descaso da sociedade e do poder público para os infortúnios da vida.
Ó tempos! Ó costumes! Urge uma reflexão sobre o tema. Houve uma reviravolta nos costumes, porém a pobreza dos infelizes continua grassando em nossa sociedade, patrocinadora das desigualdades sócias.
Que todos tenham um Natal Feliz e alegre com menos desigualdade, mais compreensão, tolerância e de muita solidariedade.